quarta-feira, 9 de junho de 2010

Na Fronteira, de Luiz Carlos Sá

VIDA DE ARTISTA

luiz carlos sá

NA FRONTEIRA

Era pra ser apenas mais um fim de semana de shows igual aos outros. Mas por alguma estranha razão, nossas idas ao Mato Grosso – e aí sempre tanto fez sul ou norte – nunca foram comuns: sempre dão o que contar.

Então saímos de Sampa numa bela manhã de inverno em algum ponto dos estertores da década de 80, não me peçam, por favor, pra lembrar em que ano foi isso, e fizemos um lindo vôo até Campo Grande, para um show invulgarmente comum dentro da história de nossa saga mato-grossense de costume, levando na lembrança a imagem de um projeto Pixinguinha que fizéramos poucos anos antes na mesma cidade onde num jantar com o ex-governador Rondon Pacheco, assistimos nossa inefável lady Inezita Barroso, cantora de raiz e figuraça adorável, beber várias garrafas de cerveja quente num calor de 40 graus com um sorriso encantador e porisso mesmo com a mesma voz de quarenta anos antes...

Bom, mas vamos nos concentrar naquela idéia estranha que Wilson “El Flaco” Gonçalves, nosso operador-cirurgiã o-de-som, teve ao cair da agora fria madrugada de Campo Grande, véspera de nosso show em Dourados:

- Cara, nós vamos estar perto da fronteira...

-?...

- E aí que a gente podia ir pra Ponta Porã e comprar uns baratos no Paraguai, em Pedro Juan Caballero. Eu já estive lá.

Vale lembrar que naquela época a entrada de importados no Brasil ainda era bem restrita. Comprar no Paraguai dava um caldo. Problema: a fronteira ficava a uns cem quilômetros de Dourados e tínhamos um show à noite, para o qual Wilson tinha que chegar a tempo da passagem de som, lá pelas cinco da tarde. Aliás, não só o Wilson, né, de preferência nós todos... Mas a persistência do “El Flaco” produziu a onda: alugou dois fuscas – éééé, dois fuscas, pode?! – e lá fomos nós despencados pra Ponta Porã. Parênteses: eu particularmente sempre achei “Ponta Porã” um dos nomes mais bonitos que uma cidade pode ter. Acho misterioso como “Casablanca”, belo como “Rio de Janeiro” e charmoso como “Buenos Aires”. Então, conhecer Ponta Porã pra mim era como o 007 conhecer Timbuctu. E, vamos e venhamos, Pedro Juan Caballero também não deixa de ser um nome instigante, ainda mais no Paraguai!

Lá fomos nós, então, a equipe inteira, o Flaco pilotando um Fusca e eu o outro, sem dó, pé no fundo. Saímos de Dourados umas onze da manhã, suficientemente atrasados para o mar de compras a que nos propúnhamos e chegamos lá tipo meio dia. E tome de caixa de uísque, pacote de cigarro, eletrônicos, etcetera, multiplique isso aí por oito e imagine o que os fuscas viraram. Pra arrematar a doideira, já lá pelas duas da tarde, nosso baixista Sergio Kaffa intuiu uma indesculpável falha cultural:

- Vamos embora sem tomar uma Dorada?

Dorada era uma cerveja paraguaia com a qual tínhamos tido uma boa relação num show anterior em Foz do Iguaçu.

- Dorada! – rugimos em coro. Partimos então prum boteco fronteiriço que achamos mais ou menos digno da nossa presença. Quando nos lembramos de ir embora já passava das cinco. O show era às nove. Tínhamos três horas pra passar pela alfândega, voltar pra Dourados, passar o som, correr pro hotel, tomar banho e fazer o show. Na alfândega a coisa encrencou: passa isso, não passa aquilo, paga isso, não paga aquilo... acabou que pegamos a estrada já quase anoitecendo e chegamos de volta a Dourados ainda tendo que devolver os dois agonizantes Fuscas já arrependidos de serem refrigerados a ar e pedindo água. Claro que depois de tanta agitação o tempo das músicas saiu corrido, a banda parecia sempre puxar os tempos pra cima e depois do show ouvimos de vários fãs mais pro heavy metal que “foi ótimo”...

No dia seguinte partimos no nosso ônibus fretado de volta para Campo Grande, no rumo de pegar um vôo para Cuiabá, onde faríamos nosso último show da excursão. Sabe Deus o que o bagageiro do buzum carregava e talvez por isso mesmo o pobre coitado gemeu, bufou e afinal enguiçou no meio da estrada. Perder o vôo era perder o show. Resolvemos então dividir a gig em duas partes: tentaríamos uma carona na frente, eu, Guarabyra e Kaffa, que poderíamos fazer um mezzo-show pra pelo menos não decepcionar demais o público cuiabano. O resto da banda seguiria depois, pro que desse e viesse. No porão do nosso ônibus seguiam quase duas toneladas de equipamento de som, indispensáveis para a perfeição técnica do espetáculo.

Descemos do ônibus e botamos o polegar na roda, num tempo e num lugar onde carona não era muito perigoso nem de dar nem de pegar. Parou um Escort com um rapaz que ficou feliz de nos levar até o aeroporto. Mas isso não foi nada: sorte foi a do resto da banda, que menos de meia hora depois de nós já estava a bordo de um ônibus de um... Colégio de freiras! As freiras, muito simpáticas, pararam seu ônibus colegial e trasladaram todo nosso equipamento para seus bagageiros. Resultado: conseguimos todos – e mais o equipamento completo - pegar o vôo para Cuiabá, que para nossa sorte adicional estava atrasado quase uma hora. A única dificuldade foi convencer os pequenos alunos de que aquelas figuras cabeludas que entraram em seu ônibus eram absolutamente inofensivas. Mas com meia hora de viagem a banda tinha conquistado as crianças e todos já cantavam juntos a trilha sonora da Noviça Rebelde. Mentira, claro. A garotada ficou cabreiríssima com aquele monte de gente estranha tentando sorrir e ser amigável. Mas as freiras levaram numa boa e – com caridade verdadeiramente cristã – deixaram nossa equipe no portão de embarque.

Pra completar o bizarro da parada, depois do show de Cuiabá fomos parar num cassino clandestino onde fomos recebidos por uma espécie de pai-de-santo cercado de mulatas estratosféricas e perdemos – quer dizer, eu perdi - uma grana na roleta e no bacará. Como se tudo isso não bastasse embarcamos, virados de noite, num vôo da saudosa Transbrasil que soubemos depois ser o Vôo da Carne. Explico: era o vôo das cinco da manhã que levava a carne recém-cortada do gado pantaneiro para São Paulo. Em conseqüência o avião saía pesadaço e tinha que descer em Guarulhos com quaisquer mínimas condições de descida. No meio de uma cerração brutal, só enxerguei a pista na primeira batida dos trens de aterrissagem desse último e único remanescente que voei dos velhos Boeing 707.

Há uns dois anos atrás voltamos a Cuiabá e nada de extraordinário aconteceu, o que me fez querer voltar pra lá de novo o mais breve possível. Afinal de contas, temos que manter a escrita, não é mesmo?


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A Coluna VIDA DE ARTISTA foi publicada na Revista Backstage e em breve estará reunida em um livro de crônicas sobre a carreira .

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